segunda-feira, 16 de novembro de 2009

A namoratriz

            Em eixo de um deus de muitos nomes sigo a correnteza que me foi imposta. Em um rio sem começo ou fim vivo e revivo quando sou requisitado. Em um dia monótono como qualquer outro vislumbrei à encosta um vulto do que parecia ser uma mulher. Fosse o que fosse, me intrigava. Eu sei que nenhum de nós deveria deixar o fluxo do rio, mas algo além de mim me empurrava para a margem do rio. Encontrei terra firme e estranha. Eu estava, definitivamente, fora do meu espaço.

            Segui caminhando por floresta densa e nebulosa. Quando esta findou, a paisagem desenhou diante de meus olhos um belíssimo alvorecer. Vi-me em uma praia de areias brancas parcialmente deserta, não fosse pelo vulto caminhando ao longe. Tentei correr para alcançá-lo, mas era como se algo fincasse minhas pernas fundo na areia fofa. Enquanto assistia ao esmaecer de meu objetivo ao longe, ouvi uma voz que nunca antes tivera ouvido:

 

-- Oi.

-- Olá.

-- O que você está fazendo sozinho aqui na praia? Está perdido? – Ao me virar em direção à voz me deparei com uma belíssima mulher. Ela estava acocorada, mas podia-se dizer que não era alta. Tinha pele dourada e cabelos negros lisos até o meio das costas. Uma verdadeira musa de cinema. Seus olhos castanhos cor de mel me encaravam, procurando uma resposta.

-- Perdido. Não há palavra mais adequada. Eu estava procurando por uma pessoa.

-- Eu posso ajudar de alguma forma? – Me vi mudo diante da pergunta. Não sabia onde nem por quem procurar.

-- Eu não sei.

-- De onde você é? – Assustei-me com a pergunta repentina, que ressoou no meu âmago. De onde eu sou?

-- Venho aqui do lado. Do rio.

-- Não conheço. Estranho como as coisas mais inusitadas nos avizinham e muitas vezes nem tomamos conhecimento delas. – Fez-se um estranho silêncio. Daqueles que as pessoas sempre tentam evitar, mas que diz milhões de coisas. – Então, por quem você estava procurando?

-- Não sei ao certo.

-- Não entendi.

-- Sabe quando você vê uma pessoa e, mesmo sem conhecê-la, sabe que ela vai ser importante na sua vida de alguma maneira?

-- Acho que sim. – Ana aquiesceu. De alguma forma sentiu-se sem graça com o comentário.

-- Foi o que aconteceu. No momento em que eu a vi eu soube que teria de encontrá-la.

-- É uma mulher? – Lucas não sabia, mas preferia pensar que sim.

-- Acho que sim, não vi de perto. – Os dois cessaram a conversa por um instante. O tempo passara despercebido e, pelo Sol forte, já passava de meio dia. Incrível como o tempo deixa de existir quando estamos com quem gostamos. Sim. Podia-se dizer que Lucas gostava de Ana. Não sabia explicar o porquê. Seria pela sua voz doce? Pelo seu perfume de lírios? Ou simplesmente porque ela fora a primeira pessoa com quem conversara nessa terra estranha à sua? Por que ele deveria encontrar um porquê?

-- Eu sempre gostei do mar. As ondas são tão enigmáticas. Te dragam para o mar como se fosse um ente querido e te jogam à areia como se fosse o pior dos seres humanos. – Disse Ana, quebrando o silêncio. – Mesmo sem entendê-las admito que elas têm um propósito. Não sei ao certo qual, mas tudo nessa vida tem uma razão de ser.

-- Até nós?

-- Principalmente. Todo ser humano tem sua razão de ser. Senão, não seria.

-- Não falo de todos os seres humanos, falo de nós. Você acha que eu e você, aqui e agora, temos a nossa razão de ser?

-- Acredito mais a cada segundo que passa. – Os olhos se cruzaram como não haviam feito antes. O coração acelerou. A boca seca. Respiração descompassada. Borboletas na barriga? Todas. Um movimento adiante. Lábios se tocando. Coração quase parando de tanto bater. Um beijo. O beijo.

            Ficaram na praia o restante da tarde. Conversando. Rindo. Pensando o quão inusitada era a situação que estavam vivenciando e o quanto não queriam que acabasse. Um por do Sol fenomenal se desenhava no horizonte. Ana olhou para Lucas com o olhar perdido, triste de certa forma.

 

-- Tenho que ir.

-- Para onde?

-- Embora. – Lucas sentiu seriedade e pesar no tom de voz de Ana.

-- Por quê? Eu pensei que quisesse ficar.

-- Eu quero. Mas preciso ir. Sem explicações. Só desculpas. Apenas ir.

 

            Ana beijou Lucas ternamente. Ele sabia que ela não queria ir. Então por quê? O gosto salgado no beijo dizia a Lucas que era hora de partir. Voltar para o lugar de onde nunca o deviam ter deixado sair. Seguindo o ritmo de seu rio como páginas de livros, caminhando para o fim do romance. Lucas olhou para Ana uma última vez e notou que ela chorava lágrimas que não eram suas. Viu nela um ser transbordante de sentimentos emprestados. Ana não era Ana. Quem era então? Mais um vulto naquele dia tão extra-ordinário.

            Lucas caminhou confuso pela floresta, rumo ao único lugar que podia chamar de casa. À beira do rio, estacou. Seria o bastante viver na correnteza do rio depois de ter gozado da beleza das ondas do mar? Atirou-se no rio. Sem canoa e sem esperança. O ar lhe faltava agora. Pensava em Ana e em todo o resto. Flashbacks permeando sua mente. O peito pesava. Quanto mais afundava nas águas do rio mais frio sentia. Sentia a vida esvaindo-se de seu corpo. Esperava pela luz branca, mas o que veio foi escuridão. Num repente Lucas se viu em sua canoa, trilhando o caminho traçado pelo rio. Entendeu, então, que não podia morrer porque seu criador não queria que assim fosse. Não podia ter Ana porque ela não fazia parte do seu mundo. A aparente fuga não passava de uma ilusão premeditada. Parte de sua história.